domingo, 30 de setembro de 2007

Tragédia de Ésquilo ganha tom contemporâneo no canto ideológico do Folias

Dagoberto Feliz e Patrícia Barros em cena de Orestéia

Um dos grupos teatrais de maior expressão do cenário nacional, o Folias comemora 10 anos de vida com ousadia e traz à cena a tragédia grega “ Orestéia”. No espetáculo, a trupe propõe reflexões críticas acerca do modelo de democracia instaurado no mundo ocidental, traça paralelos com a história dos países latino-americanos e do próprio movimento teatral.

Por Patrícia Rocco
Fotos: Joana Mattei

Com reflexões nada ingênuas sobre questões existenciais, políticas e sociais, o grupo Folias chega aos 10 anos e nos brinda com uma proposta que salta aos olhos: “Orestéia – O canto do Bode”.

E foram longe... Escolheram a tragédia de Ésquilo (obra-prima do mundo grego, escrita no século V a.C.) para - numa riquíssima versão do clássico - fazer uma reflexão sobre a criação da democracia (surgimento do Estado grego), sobre como esse modelo influenciou a formação do continente latino-americano e toda a violência que se seguiu borrando de sangue e luto grande parte de nossa história.

Conduzida ironicamente por um simpático palhaço (interpretado pelo excelente ator Dagoberto Feliz) de sorriso doce, expressão amável e olhar melancólico, a montagem surpreende. Ao adentrar o Galpão do Folias, o espectador é surpreendido por um cenário sombrio, com paredes descascadas, restos de cenografia e poucas – por vezes, velhas – cadeiras para sentar. Antes mesmo de a peça começar, surge o primeiro paralelismo simbólico entre a tragédia grega e as tristes condições em que vivem os países latino-americanos e (por que não?) o fazer teatral no Brasil.

Essa salada é apimentada ainda com ingredientes de muita criatividade, originalidade e força cênica. Durante todo o espetáculo, somos convidados a romper os muros da convenção e decifrar as inúmeras metáforas propostas pela inteligente montagem de Marco Antonio Rodrigues e Reinaldo Maia. Tente imaginar Agamêmnon e Palas Atena numa possível referência ao populismo; Clitemnestra e Egisto na encarnação exacerbada da terrível face da tirania e Orestes, a democracia. Soma-se a isso o desafio da leitura às analogias e inserções feitas a todo o instante como a citação da carta testamento de Getúlio Vargas ou mesmo o bizarro radinho de pilhas tocando músicas de Roberto Carlos...

Orestéia é uma crítica ácida às mazelas humanas em muitas esferas de suas manifestações. Neste trabalho, os foliões da rua Ana Cintra destilam uma verborragia cortante e inundam a platéia com indagações sobre o papel do artista na sociedade, o fenômeno midiático da espetacularização das artes, a manipulação da informação e do poder, além da vergonhosa participação e contribuição dos veículos de massa neste processo.

O que não faltam são inserções estéticas e verbais como referência ao período do populismo, às atrocidades cometidas pela ditadura em nome da democracia (anos 50 e 60), à poesia triste da volta dos exilados (anos 70 e 80) e, por fim, o processo de redemocratização. Aqui a promessa política nunca cumprida de um mundo mais justo e do poder mais próximo ao povo (últimas décadas do século XX).
E é em meio a esse desfile de fatos caóticos que o palhaço-corifeu relembra, brada e emociona ao entoar o grito denunciativo de alguns dos mais tristes acontecimentos da história latino-americana. “Quem poderia negar-me agora o direito de recordar estas verdades? (...) As milhares de vítimas da ditadura Argentina, torturadas e assassinadas pelos generais de plantão em defesa da democracia. (...) A prisão, a tortura e o assassinato de milhares de brasileiros pelo golpe militar de 1964, alegando a defesa da família, da tradição e da propriedade. (...)”. Em outro momento, de olhos semivendados e, em tom debochado, sugere: “Na balança da Justiça, o prato da aprendizagem desce para aqueles que sofreram”.

Impacto Estético – Além da experiência da linguagem dramática muito bem explorada pelos afinados atores, o espectador de Orestéia é surpreendido também pelo impacto estético que a peça propõe. O espaço cênico é surpreendente com elementos cenográficos compostos por aparatos que nos remete ao caos, a escassez de recursos. E, mais uma vez, o tom denunciativo surge em meio à criatividade que permite, por exemplo, a concepção de um narrador que empunha um ventilador e segue em cena borrifando água para mostrar os ventos que levavam as naus de Agamêmnon rumo à Tróia.

Os célebres personagens de Ésquilo são desconstruídos esteticamente e aparecem em cena ora como maltrapilhos guerrilheiros cansados do combate, ora desnudos, ora revitalizados pelos ares revolucionários dos anos 60 em suas roupas à la Hair, ora como nossos contemporâneos de terno e celular em punho.

Mas, a concepção da rainha Clitemnestra, interpretada pelo ator Danilo Grangheia, é, sem sombra de dúvida, a menina dos olhos do espetáculo.
Com um figurino exótico e expressões que transitam entre a elegância, tons monocórdios e gestos exagerados, a monarca rouba a cena em atuação que enche o palco e a alma da platéia.

Os olhos pintados de negro reforçam a idéia do espírito maligno da monarca, destaca a expressão dissimulada e os olhares fulminantes que lança sobre seus subalternos, incluindo aqui os espectadores que ela também tenta seduzir, utilizando-se de excelentes recursos dramáticos, a fim de conquistar apoio em seu julgamento.

A entrega do ator ao personagem e o resultado que consegue com Clitemnestra são dignos de reconhecimento além aplausos.

Durante o julgamento do crime de matricídio cometido por Orestes para vingar a morte do pai Agamêmnon brutalmente assassinado pela esposa traidora, Clitemnestra, o público é envolvido na cena e decide – por meio do voto - o destino de Orestes. A deusa Palas Atena surge como símbolo de Justiça e Sabedoria e toma frente do tribunal, instituindo assim a democracia. Mas, surpreendentemente, o resultado do julgamento é idêntico ao da obra original, não dependendo da contagem dos votos. E aqui está o pulo do gato! Nesta encenação a opinião popular é o que menos importa, já que a decisão está sempre nas mãos divinas dos poderosos.

Alguma semelhança com Brasil de ontem ou de hoje?

Com este brilhante espetáculo, o Folias nos leva a inúmeras e ricas leituras. Uma dessas possibilidades está na reflexão sobre o papel da tão cultuada democracia e de que forma ela violenta seus cidadãos. Violência moral, intelectual, material, física. De que forma contribui para a manutenção da desigualdade e da contradição num país que abriga taxistas engenheiros e prostitutas diplomadas?

Entre tantos questionamentos propostos, a peça nos presenteia também com momentos de pura beleza poética. A velha canção de Noel Rosa nos toma de assalto quando o simpático palhaço-narrador toca sua sanfona e, com lágrimas aos olhos, cantarola a letra de “Pierrô Apaixonado”. A troca de cenário ao som de “Fim”, do poeta português Mario de Sá-Carneiro, é igualmente tocante e forte.

Após três horas e meia diante de uma verdadeira obra de arte teatral, vem a escuridão. Com ela o silêncio e o instante do aplauso. E nós permanecemos ali. Atônitos.
Orestéia é a celebração da arte exercida em sua máxima potência. Teatro de discussão política e do aprendizado de como resistir no sonho “sem ceder à sedução de uma vantagem”.

Transformador. Imperdível!

Elenco: Atílio Beline Vaz, Bira Nogueira, Bruna Bressani, Carlos Francisco, Dagoberto Feliz, Danilo Grangheia, Flavio Tolezani, Gisele Valeri, Nani de Oliveira, Paloma Galasso, Patrícia Barros e Zeca Rodrigues.

Orestéia – O Canto do Bode
** Em cartaz no Galpão do Folias **
R. Ana Cintra, 213 – Santa Cecília – ao lado da estação Sta. Cecília do metrô.
Tel. (11) 3361-2223

5as. e 6as. às 20hs – R$ 10,00 - promocional
Sáb. às 20h e dom. às 19h - R$ 30,00censura 14 anos, 70 lugares, 190 minutos (com intervalo de 10 min.)Até 04/11